Crise financeira quase fez o clube desistir da inédita vaga na competição nacional
Stéfano Salles
Ensina o manual que o árbitro deve ser o mais discreto possível. Se o torcedor não lembrar que ele esteve em campo, tanto melhor. Mas não foi o que o destino reservou naquela noite de terça-feira, 27 de julho de 1965 a Antônio Viug. Depois de empates em três jogos, o que se repetiu na prorrogação, e diante de um esdrúxulo regulamento, como ditava a tradição da Taça Brasil, o árbitro da vizinha Federação Carioca de Futebol precisou sortear em campo, na moedinha, quem passaria para a segunda fase da competição: Eletrovapo ou Desportiva?
Até que o árbitro precisasse lançar a moeda ao alto para a definição do classificado, o caminho foi longo. O vencedor do Supercampeonato Fluminense chegou à competição nacional sob protestos do Americano de Campos. Isto porque conquistara o Campeonato Fluminense da Primeira Zona, que em 1964 englobava clubes de Niterói e São Gonçalo. Assim, reivindicou o direito de buscar o título máximo contra o vencedor da Sexta Zona, de Campos dos Goytacazes. No entanto, o Americano já havia sido proclamado pela FFD Campeão Fluminense.
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O “Supercampeonato” foi a maneira encontrada para resolver a controvérsia e apontar o representante do estado na VII Taça Brasil. O time da então capital levou a melhor ao vencer por por 1 a 0 no Estádio Assad Abdala, no Barreto, em Niterói, e ao empatar por 1 a 1 no Godofredo Cruz, em Campos, garantindo a classificação para a competição nacional. Era o apogeu da ascensão meteórica de uma agremiação que se profissionalizara apenas dois anos antes.
O alvinegro campista questionou administrativamente a classificação do rival, porque a FFD mudara os critérios de obtenção da vaga e cobrou a realização de um terceiro jogo que, no novo entendimento da entidade, só ocorreria em caso de vitória alvinegra. O recurso inicial, contudo, não foi julgado pelo Tribunal de Justiça Desportiva (TJD) antes do início da competição nacional. Assim, não houve grande ameaça à participação da equipe do estaleiro na Taça Brasil.
Em seu controvertido livro “Implantação do futebol profissional no Estado do Rio de Janeiro”, Eduardo Vianna, ex-presidente da FFD e, posteriormente, da Ferj, conhecido torcedor símbolo do clube campista e por suas posições a ele favoráveis, protesta contra o fato, mas confirma a versão. Depois de criticar o Supercampeonato instituído pela FFD, por ele reduzido à condição de eliminatória, o ex-dirigente afirma na obra:
“Também protestou administrativamente, o Americano contra a classificação da A. E. Eletrovapo, sem a realização do terceiro jogo programado na eliminatória, com apenas uma vitória e um empate sem perfazer 4 pontos, como previa o regulamento, o que, entretanto, através de despacho, foi indeferido, sem que o calendário da CBD, comportasse recurso ao TJD da FFD”.
O confronto da Taça Brasil, como praxe, colocava frente a frente dois campeões estaduais. Se a efêmera Eletrovapo surpreendeu ao conquistar o Rio de Janeiro, no Espírito Santo o desfecho foi bem mais previsível. A Desportiva Ferroviária conquistara o bicampeonato em decisão com o Rio Branco e tinha o direito, concedido pelo sorteio da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), de decidir em casa.
O PERCURSO E O PLANTEL
As dificuldades de implementação do futebol profissional no antigo estado do Rio de Janeiro e o desempenho tímido dos clubes na Taça Brasil sempre suscitaram dúvidas sobre o real nível técnico da competição e dos representantes fluminenses. No entanto, se não era um clube conhecido, o Eletrovapo tinha ao menos um time de respeito, ainda que vivesse um período histórico que, na Guanabara, se encerrara nos anos 30: o do semiprofissionalismo.
É verdade que o Azulão não contava nem de longe com a força dos grandes clubes da Guanabara, mas não era muito diferente de qualquer dos pequenos da vizinha cidade-estado. Os jogadores eram empregados da Companhia Eletrovapo de Serviços Marítimos. No entanto, não eram operários do grêmio fabril escolhidos para atuar, os contratados para o time que eram lotados no estaleiro. Antes da estreia nacional, “O Globo” de 18 de julho destacava as condições dos atletas: “Todos os atletas trabalham na companhia, em diferentes serviços, como guindaste, tôrno, cabina, caldeira, almoxarifado, solda”.
Os jogadores contratados eram, majoritariamente, atletas experimentados e reconhecidos por passagens por times da Guanabara. Boa parte, da Portuguesa, então recém-estabelecida na Ilha do Governador, onde se instalara após um período baseada em Cosmos. De lá, veio o treinador Antônio Morais que, no Luso-Brasileiro, era responsável pelo departamento técnico e a quem costumeiramente a diretoria recorria como treinador interino.
Daquele time, tinham passagem pelo clube lusitano os goleiros João Reis e Antoninho, que anos antes arrancara elogios da lenda Lev Yashin, o Aranha Negra, durante excursão da Portuguesa pela União Soviética, após jogo entre os lusitanos e o Dínamo Moscou. Também os zagueiros Estêvão e Juvaldo, os armadores Antoninho, Barbosinha, Leco e Guilherme, o mais experiente do plantel, com passagens por América, Portuguesa Santista e autor do gol do título fluminense.
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Os outros atletas também estavam acostumados às competições de bom nível técnico da Guanabara, como o pacotão de reforços trazidos do Canto do Rio, com Amaro, Orlando, Ivo, Julinho, Neyr e Deheracy. O armador Ity veio do Flamengo, e Ney, do Botafogo. O treinador Antônio Morais se dividia em jornada dupla em estados diferentes, com expedientes na Portuguesa e no Eletrovapo, uma vez que não se desvinculara do emprego no clube guanabarino.
Os reforços para a competição foram poucos: os armadores Fernando Pinto e Bina, e o atacante Ronaldo foram os nomes contratados pelos marítimos para sua missão mais difícil, que se tornaria ainda mais delicada nos dias seguintes.
CRISE ÀS VÉSPERAS DA ESTREIA
Antes mesmo das finais contra o Americano, o clima de incertezas sobre a participação da Eletrovapo na Taça Brasil, em caso de eventual classificação, chegou à FFD. Rumores davam como certo que o clube dos marítimos declinaria da disputa nacional, por conta de uma crise entre o grêmio fabril e o estaleiro, seu mantenedor. No entanto, o Eletrovapo cumpriu seus compromissos esportivos e a contenda foi adiada por algumas semanas.
Já de posse da taça e festejado por sua trajetória relâmpago, o Eletrovapo se viu diante do primeiro impasse. Com as dificuldades financeiras, o presidente Evaristo Paes da Fonseca renunciou ao cargo, ao lado de seus dois secretários, deixando a cadeira — e o abacaxi — nas mãos do vice-presidente estatutário, João Baptista de Mello, que se tornara guardião de um cofre vazio.
Uma campanha liderada pelo jornal “O Fluminense” procurou mobilizar a cidade, para que o representante da capital e do estado fizesse papel digno na Taça Brasil. Todos os torcedores foram estimulados a pagar ingresso na partida contra a Desportiva, iniciativa encampada até mesmo pelo presidente da FFD, Alair Pereira. Houve venda antecipada de bilhetes em quatro pontos da Cidade Sorriso e expectativa de que uma boa renda aplacasse a crise.
Apesar do movimento popular, os atos ainda eram tímidos para que o clube pudesse arcar com as despesas. Provocado, o prefeito Emílio Abaunahman (Arena) doou 100 mil réis para que o azulão viajasse com algum conforto para a capital capixaba e pudesse representar dignamente o estado no jogo da volta. O percurso, de acordo com jornais da época, foi feito com “ônibus especial” e transmitido para o Rio de Janeiro pelas ondas da Rádio Difusora Fluminense.
Inexplicavelmente, a diretoria do Eletrovapo preferiu, desde o início, fazer o primeiro jogo em casa. Além de perder a vantagem técnica de abrigar a decisão, não poderia sediar a terceira partida, caso a segunda também terminasse em igualdade e isso fosse necessário, como efetivamente ocorreu.
ENFIM, A COMPETIÇÃO
Como era comum, os jornais da Guanabara dedicavam pouco espaço às participações dos clubes do Rio de Janeiro em competições estaduais e nacionais. Eram tratados como distantes equipes nordestinas. Pesava também o fato de o estado vizinho não ter publicações sólidas de circulação realmente estadual. Eram jornais mais concentrados no cotidiano de praças específicas. Geralmente, Campos, Niterói, Petrópolis e Volta Redonda, ignorando quase que por completo o que se passava fora de suas áreas de circulação.
O jogo com mando de campo da Eletrovapo ocorreu no Estádio Assad Abdala, de propriedade do Manufatora, na Rua Doutor March, no Barreto. Em um de seus primeiros jogos com grená, o time capixaba, que jogava então de amarelo e azul, saiu na frente naquele 18 de março. Bezerra, aos 25 minutos, colocou a equipe de Vitória em vantagem, ao aproveitar boa jogada construída por Maurélio. A bola ainda tocou caprichosamente a trave de João Reis, antes de parar no fundo da rede.
Foi longa e sofrida a espera, até que aos cinco minutos da etapa final, o ponteiro Orlando deixou tudo igual, aproveitando jogada iniciada por Fernando Pinto. Contou também com falha providencial do zagueiro Matheus. O gol deixou a sensação de que o classificado seria apontado no jogo da volta, para o qual Antônio Morais não poderia contar com o zagueiro Edmar. Expulso após falta dura em Cunha, ele desfalcaria o time de Niterói no segundo jogo, para o qual Antônio Morais escolhera Estevão como substituto.
Passada a apreensão do primeiro jogo, no qual as duas equipes estreavam em competições nacionais, a segunda partida foi mais agitada. No entanto, os registros delas são ainda mais rarefeitos e os minutos dos gols não são conhecidos. A principal fonte do confronto é o relatório da CBD, segundo o qual Ity abriu o placar para os marítimos no Estádio Governador Blay. No entanto, Cunha e Silvinho logo viraram para o time da Companhia do Vale do Rio Doce e foram para o intervalo com a vantagem. Na segunda etapa, Pingo deixou tudo igual.
O empate persistente levou a CBD a marcar um terceiro jogo, chamado pelos jornais de “a negra”, dois dias depois, no mesmo local. Se, nas outras oportunidades, os jogos ocorreram à tarde, desta vez as equipes jogariam à noite. Assim como na primeira partida, a carência de informações remete ao relatório da CBD, segundo o qual o Eletrovapo abriu o placar no primeiro tempo, e a Desportiva deixou tudo igual ainda antes do intervalo. Com o destino da igualdade permanente, a partida foi para a prorrogação, na qual o resultado não foi surpresa para ninguém que acompanhasse de perto a disputa.
Com mais meia hora de jogo, o Eletrovapo ainda mostrou pernas e pulmões e fez 2 a 1 no primeiro tempo, com Barbosinha. Fora de casa, o resultado deixava a sensação de que a classificação estaria bem encaminhada, até que Cunha, na segunda etapa, decretou o resultado mais previsível para o confronto: o empate. A igualdade se repetiu em quatro ocasiões, os três jogos no tempo regulamentar, mais a prorrogação, perfazendo 300 minutos, ou cinco horas de futebol, mais os acréscimos. O regulamento não previa disputa de pênaltis para que fosse conhecido o vencedor.
Dias depois, em uma das raras entrevistas que repercutiram a eliminação, Antônio Morais avaliou a performance da equipe e a eliminação ao “Diário Carioca”: “Sou o único treinador invicto da ‘Taça Brasil’. Perdi apenas na ‘cara ou coroa’ e lamentavelmente, só ensinei a meus jogadores futebol. Este negócio de jogar moedinha para cima e ver o que dá, honestamente, não me passou pela cabeça. Mas que a tática deu certo contra mim, ora se deu”, disse o treinador.
Na verdade, além do Eletrovapo, apenas o campeão Santos, do técnico Lula, terminou a competição invicto. Assim chega ao fim a história do time que se viu ameaçado de não disputar a principal competição de sua curta história por falta de dinheiro e acabou eliminado dela por uma moeda, na sorte lançada por Viug. Se existem, os deuses do futebol são mesmo irônicos.
Agradecimentos: Alexandre Magno Bernwanger, Auriel de Almeida, Orlindo Farias e Rodolfo Mageste.
*Stéfano Salles é jornalista e pesquisador-fundador do Observatório do Futebol Fluminense