Canto do Rio já encarou o Chelsea em Londres; e deu bastante trabalho
Na Inglaterra, niteroienses ainda enfrentaram Leicester e Tottenham
Fabiano Gouvêa e Stéfano Salles*
Simpático intruso no Campeonato Carioca, em um tempo no qual Niterói era capital de outro estado, onde havia um Estadual próprio, o Canto do Rio já mediu forças com o Chelsea, campeão da Uefa Champions League da atual temporada ao bater o Manchester City por 1 a 0. O confronto, onde o time azul e branco fez bonito, integrou uma excursão do clube da Cidade Sorriso à Europa, com direito a uma passagem por Londres em abril de 1958.
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No banco de reservas, o time contava com a experiência de Zezé Moreira, ex-treinador da seleção na Copa do Mundo de 1954, na Suíça, quando o Brasil parou na forte seleção da Hungria, nas quartas de final. Os niteroienses vinham de boa campanha no Campeonato Carioca, no qual terminaram em sétimo lugar — considerado também o primeiro entre os pequenos da temporada.
A equipe obtivera na competição resultados importantes, como vitórias sobre América e Fluminense, ambas por 1 a 0. O médio-direito Victor, ex-jogador do Fluminense, foi um dos destaques daquela equipe. Mas o clube conseguiu ainda reforçar o elenco para o desafio internacional. Trouxe o zagueiro Pinheiro, outro ex-tricolor, titular da defesa brasileira na Copa de 1954, onde foi um dos homens de confiança de Zezé Moreira.
O elenco de Niterói chegou experimentado à Inglaterra, fruto de jogos feitos antes por Espanha, Bélgica, Alemanha Ocidental, França e Suíça. Neles, conseguiu resultados interessantes, como vitórias sobre os espanhóis Elche (2 a 1) e Levante (4 a 2), além de ter superado o suíço Servette por 3 a 0.
Em abril, os cantorrienses seguiram para Londres, onde eram aguardados com entusiasmo. Brasil e Inglaterra se enfrentariam na Copa do Mundo que começaria dali a dois meses, na Suécia. Os jogos do Canto do Rio eram então uma rara oportunidade para que os ingleses pudessem ver de perto o futebol brasileiro.
A primeira partida na terra da rainha Elizabeth foi contra o Chelsea, em Stanford Bridge. Cabe destacar que os blues daquele tempo não eram sequer sombra da força inglesa atual, a escalada rumo ao novo status começaria apenas em 2003, quando o clube foi comprado pelo bilionário russo Roman Abramovich. Brigava para se firmar na elite do campeonato inglês e abandonar o estigma de clube ioiô.
PRIMEIRO DESAFIO LONDRINO: O CHELSEA
O Chelsea vinha de um 12º lugar na temporada de 1956/1957, e entrou em campo com dois jogadores da seleção inglesa: o zagueiro Sillet e o atacante Brabrook. Mas o primeiro a soltar foguetes e clarins, como no mais pitoresco dos hinos compostos por Lamartine Babo, foi o Canto do Rio. Os niteroienses abriram o placar aos 11 minutos, com Pinheiro, em cobrança de pênalti.
A vantagem do Cantusca durou até os 38 minutos, quando Pinheiro trocou o papel de herói pelo de vilão, ao cometer pênalti, cobrado por Sillet, que deixou tudo igual. A virada londrina veio na segunda etapa, com um chute de Allen, aos seis minutos.
O gol fez com que o time de Zezé Moreira se lançasse ao ataque. O Chelsea se comprimiu na defesa. A pressão surtiu efeito e, aos 21 minutos, após boa triangulação ofensiva, Bera bateu forte, para deixar tudo igual. No entanto, a 12 minutos para o fim, Casey mostrou brilho individual para deixar os anfitriões novamente em vantagem, conduzida até o apito final: Chelsea 3 a 2.
As páginas do carioca “Correio da Manhã” destacou a diferença entre duas escolas de futebol: a dos criadores do esporte e daqueles que o revolucionaram. “Os brasileiros desenvolveram uma técnica apurada, que os locais não puderam equiparar, porém o Chelsea soube conservar a serenidade nos momentos críticos e isso se traduziu em vantagem”, disse a reportagem.
O PRIMEIRO SULAMERICANO NO WHITE HART LANE
O segundo jogo do Canto do Rio na capital inglesa foi contra o Tottenham, vice-campeão da temporada anterior. Neste jogo, tornou-se o primeiro time sul-americano a jogar no White Hart Lane, demolido em 2017, para que fosse construído no mesmo local o maior estádio particular de Londres, e o segundo do país, o Tottenham Hotspur Stadium.
No anúncio do confronto, os londrinos publicaram em seu programa que enfrentariam o “Rio de Janeiro City Champions 1956/1957”. Ou, em português, o Campeão Carioca daquela temporada. Seria uma gafe ou apenas uma maneira de promover a partida? Afinal, o Campeão Carioca de 1956 havia sido o Vasco.
Em campo, o Canto do Rio sofreu com um campo escorregadio e lamacento, por causa de uma forte chuva que caíra horas antes, e não foi páreo para os Spurs. As mais de 22 mil pessoas que compareceram ao jogo àquela noite viram o Tottenham — que contava com Bobby Smith e Maurice Norman, da seleção inglesa, e Blanchflower, da Irlanda — dominar completamente o primeiro tempo e abrir vantagem de 4 a 0. Clayton, Blamchflower, Smith e, novamente, Clayton, abriram e pavimentaram o caminho da vitória.
Contudo, o momento mais bonito da partida ficou reservado para o gol de honra do Canto do Rio. Elmo descontou para o time de Niterói ao acertar um belo e improvável sem-pulo, de fora da área. Na pequena área, o goleiro Garcia teve boa participação na reta final, evitando que a derrota se transformasse em um trauma ainda mais pesado na bagagem: Tottenham 4 a 1.
Nas páginas cor-de-rosa do Jornal dos Sports, Zezé Moreira lamentou as circunstâncias da partida e entendeu que o Canto do Rio estava sendo tratado como uma espécie de “cobaia” dos ingleses. “Está claro, estavam experimentando o Canto do Rio. Queriam conhecer a reação, a capacidade física do jogador brasileiro, tomando por base o Canto do Rio”, avaliou.
O experiente ex-treinador da seleção brasileira reclamou do comportamento dos dois primeiros adversários ingleses. “Então você não viu o procedimento do Chelsea contra nós. Então, o Chelsea usou de todos os artifícios de violência para nos vencer de qualquer maneira. [O Tottenham] Também usou de artimanha imprevisível e irremediável contra nós: encharcou o campo”, afirmou.
NOVA DERROTA NA DESPEDIDA
O Canto do Rio concluiu a passagem pela Inglaterra em um jogo contra o Leicester City, atual vencedor da Copa da Inglaterra, após vencer o Chelsea. A partida dos niteroienses contra o time da cidade situada ao norte de Londres foi no antigo e acanhado estádio de Filbert Street, demolido, que deu origem ao atual King Power Stadium.
Os foxes anotaram logo aos dez minutos do primeiro tempo, com o centro-avante Gardiner, o único gol da partida. A oportunidade surgiu após bom centro do ponta-direita Wright. Publicações da época apontam que o Cantusca fez boa partida e poderia ter vencido, o que não aconteceu porque o ponta-direita Santos não estava em um bom dia. Só ele perdeu três oportunidades claríssimas de gol.
A turnê do elenco niteroiense ainda passaria por Bulgária, Noruega, Romênia e voltaria ainda a jogar na Suíça, França e na Alemanha Ocidental, antes de retornar ao Rio de Janeiro, trazendo um cartel de 12 vitórias, cinco empates e dez derrotas.
*Pesquisadores-fundadores do Observatório do Futebol Fluminense (OFF)