Brasil já teve um Bayer, que desistiu do futebol após perder vaga na ‘canetada’
Stéfano Salles e Diogo de Paula
O Brasil já teve um Bayer, sediado em Belford Roxo, uma das cidades com menor índice de desenvolvimento social do Rio de Janeiro. O clube da filial brasileira da multinacional alemã conquistou em campo o acesso à Primeira Divisão do Campeonato Carioca, como vice-campeão da Segundona de 1995, vencida pelo Barra Mansa. O clube já fazia planos para a temporada mais importante de sua história, quando se tornaria finalmente conhecido. No entanto, no fim daquele ano, a Assembleia Geral da Ferj decidiu reduzir o número de participantes da elite, sepultando o sonho germânico-brasileiro alimentado em uma das cidades com os menores indicadores de desenvolvimento social da Baixada Fluminense.
A Assembleia Geral ocorreu em 15 de dezembro daquele ano, modificando até mesmo tabelas que já estavam desenhadas. A notícia foi tão mal recebida pela direção da multinacional, que a sede brasileira, em São Paulo, decidiu pelo fim do projeto no futebol profissional, sob o entendimento de que o esporte não era gerido de maneira séria no país. A partir de então, o clube se dedicou apenas às divisões de base e competições amadoras, e jamais retornou ao profissionalismo, aventura que durou cinco temporadas, entre 1991 e 1995.
No último ano, o clube chegou a disputar uma competição nacional, o Campeonato Brasileiro da Série C. Em uma das edições mais inchadas de sua história, a competição, que naquele tempo representava a última divisão do futebol nacional, reunira 105 equipes. O Futebol Clube Bayer de Belford Roxo chegava credenciado pela boa campanha feita na Segunda Divisão, mas sem reforços. O clube, que chegou à disputa por convite, foi alocado no Grupo 5, ao lado do Volta Redonda e dos paulistas Nacional e Juventus. Má sorte? De acordo com o então supervisor do clube, João Silva, hoje no Boavista, a história não é bem assim.
“Eu era muito amigo do Zé Dias, diretor do departamento de competições da CBF. Ele me disse que colocaria o Bayer no grupo dos clubes do Espírito Santo. Eu disse que não, que queria ficar no grupo dos paulistas. Ele me questionou: ‘Você quer enfrentar as equipes de maior poderio?’ E eu disse que era exatamente isso. Ele ficou meio sem entender, mas eu queria provar um ponto. A empresa não queria nos dar reforços, achava que nós poderíamos ir com aquele time, formado pela base, para o Campeonato Carioca. E eu queria provar que não poderia ser assim”, afirma.
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O Juventus desistiu da disputa uma semana antes do início da competição. Sem remanejamento, a chave ficou com apenas três clubes, o que simplificou um pouco a tarefa, uma vez que a chave continuou a classificar duas equipes para o mata-mata. O time jovem, majoritariamente formado pelo antigo Sub-20 do Bayer, era dirigido pelo ex-treinador da categoria, Sílvio Marques, promovido como os pupilos. Apesar de 1995 ser o ano da façanha do acesso, o Bayer vivia um momento de aperto financeiro. O clube contava com um orçamento mais enxuto que o do ano anterior, quando investiu para tentar o título da Copa Rio, mas ficou pelo caminho ainda na fase de grupos.
Sem poder jogar em seu acanhado estádio, ao lado da fábrica, onde fazia seus jogos pelas divisões inferiores do Campeonato Carioca, o Bayer recorreu a um expediente típico dos clubes da Baixada Fluminense: um acordo para mandar jogos no Estádio Nielsen Louzada, em Nova Iguaçu, de propriedade do Mesquita Futebol Clube. Naquele tempo, a localidade ainda não fora elevada à categoria de município, o que só aconteceria quatro anos depois.
Em um grupo com adversários de primeira divisão, o Bayer ao menos não fez vexame em sua primeira tentativa de se apresentar ao país. Em 27 de agosto, recebeu no Louzadão o Volta Redonda para a estreia. Andinho, aos 35 do primeiro tempo, marcou o gol solitário da partida, garantindo a vitória para o time do interior. Se não foi a estreia dos sonhos, o resultado deixou ao menos a sensação de que a classificação não era um delírio daquele time quase todo saído das divisões de base.
A tabela previu ao Bayer o direito de fazer os dois primeiros jogos em casa, o que poderia ser uma vantagem, se soubesse usar bem o mando de campo. Caso contrário, teria que decidir a classificação em dois jogos longe de seus domínios. Na segunda rodada, a equipe recebeu no Louzadão o Nacional. Os jogos no local ocorriam sempre à tarde, devido à falta de refletores, problema que persiste até hoje no estádio. Mais um jogo difícil, mas a primeira vitória veio naquele dois de setembro, com placar mínimo. O meia Márcio Ramos marcou aos 27 da primeira etapa o primeiro gol de uma equipe de Belford Roxo em competições nacionais.
Diferentemente do que possa fazer crer o senso comum, o clube não era rubro-negro como o principal da holding, em Leverkusen. O time de Belford Roxo tinha as cores da empresa : verde, azul e branco. Um uniforme que lembrava o do Artsul, antes que o Tricolor da Dutra deixasse de lado as três cores para adotar uma vestimenta com predomínio do azul. O conjunto era produzido pela Carioca, e trazia o patrocínio de um dos carros-chefes da farmacêutica: o efervescente “Alka-Seltzer”.
O time de Belford Roxo folgou na terceira rodada, quando o Voltaço bateu o Nacional por 2 a 0, na Cidade do Aço, e encaminhou a classificação para o mata-mata. Encorajado pelo primeiro gol, que trouxe ainda a primeira vitória, o time de Belford Roxo foi confiante para o jogo contra o Volta Redonda, na Cidade do Aço. Mais um jogo duro, decidido aos 40 minutos da segunda etapa, quando o volante Cacá aproveitou sobra de bola após uma jogada ensaiada ter dado errado e, de bate pronto, mandou a bola no canto direito do goleiro Sandro. Foi o único gol da partida.
FINAL MELANCÓLICO PARA A PRIMEIRA FASE
A segunda vitória consecutiva valeu mais que os três pontos. Com ela, o Bayer garantiu a classificação para o mata-mata, com uma rodada de antecedência. Faltava ainda o jogo contra o já eliminado Nacional, na Rua Comendador Souza. E, com ela, uma visita protocolar que quase gera um incidente entre a direção da Bayer, em São Paulo, e a filial do Rio de Janeiro. Como o time jogaria na capital paulista, a companhia queria receber seus atletas e apresentá-los aos demais funcionários, em um almoço que aconteceria no refeitório da matriz.
“Eles não tinham muita noção do quanto isso era inadequado. A distância entre onde estávamos hospedados e a fábrica era grande, São Paulo é muito grande, isso atrapalharia muito nossa logística. Jogos fora de casa são desgastantes, a viagem foi cansativa. Então, dissemos que não. Eles entenderam, mas não desistiram. Esse encontro ficaria para depois, quando houvesse uma nova oportunidade, o que acabaria ocorrendo ainda nesse campeonato”, explica João Silva.
A partida no Estádio Nicolau Alayon não transcorreu nada bem para o Bayer. O primeiro tempo passou em branco, e todas as emoções ficaram reservadas para a etapa final. O atacante Ernani abriu o placar para o time da Baixada Fluminense aos sete minutos. O troco veio três minutos depois, quando Zeomar deixou tudo igual. As emoções ficaram mesmo para o fim. O lateral-direito Marquinhos, que já tinha cartão amarelo, foi expulso. Por volta dos 36 minutos, outros dois jogadores do time de Belford Roxo passaram pelo mesmo infortúnio: o goleiro Leonardo e o meia Márcio Ramos.
Aos 37, Gilson marcou para o Nacional, garantindo a virada. No minuto seguinte, o time paulista, com três jogadores a mais, ampliou com José Carlos. O que se viu em seguida foi o desabar de jogadores do time fluminense. O árbitro Jefferson Geraldo Alexandrino, da Federação Mineira de Futebol, narrou a situação na súmula: “Encerrei a partida aos 38 (trinta e oito) minutos do segundo período do meio tempo de jogo, em virtude de insuficiência de número legal de atletas na equipe do Futebol Clube Bayer de Belford Roxo, que naquele momento passou a ter 06 (seis atletas (jogadores) em sua equipe”.
No documento, o árbitro explica que, após as expulsões, o volante Jaílton caiu em campo, sem contato com a bola, com adversário ou mesmo companheiro de equipe, e foi retirado do gramado pela padiola. Nesse momento, o Bayer ficou com sete jogadores, número mínimo para que a partida continuasse. Em seguida, caiu o goleiro Eric, em circunstâncias semelhantes. Ele entrara havia pouco tempo, após a expulsão de Leonardo. A partir de então, o árbitro concedeu 15 minutos para verificar se algum dos atletas se recuperaria, para que a partida fosse retomada, o que não ocorreu. Assim, o jogo foi encerrado em 3 a 1.
O meia Cacá, titular que atuou na partida, dá a sua versão dos acontecimentos. “O árbitro mineiro nos prejudicou muito nesse jogo. Parecia determinado a classificar o Nacional, que tinha esse jogo e o seguinte, contra o Volta Redonda, para garantir a vaga. Ele arrumou uma confusão danada, e o nosso time reagiu a isso. E os jogadores do Nacional nos provocavam, diziam que o Volta Redonda tinha entregue o jogo anterior para a gente, para deixá-los fora, o que não é verdade. Só nós sabemos o tamanho da pressão que enfrentamos no Raulino de Oliveira para sair com a vitória naquele jogo”, afirma o ex-jogador.
UM MATA-MATA FATAL
A negativa do Bayer por enfrentar clubes capixabas na primeira fase facilitou a vida de outro fluminense que estreara em competições nacionais naquele ano: o Barra de Teresópolis. Dirigida por Dário Lourenço, a equipe da Região Serrana liderou o Grupo 6, onde se classificou em primeiro lugar, seguida pelo Rio Branco de Vitória. Não havia cruzamentos pré-definidos naquele momento e, novamente, a tendência era enfrentar a equipe do Espírito Santo, o que acabaria evitado com um novo telefonema.
João Silva voltou a entrar em contato com Zé Dias e, mais uma vez, garante ter pedido um adversário paulista para o Bayer, uma vez que a primeira fase não não cumpriu a esperada função de evidenciar as limitações do elenco de Belford Roxo para o desafio da Primeira Divisão do Campeonato Carioca, onde teria pela frente a dupla Fla-Flu. A tendência era um confronto contra outro clube do Espírito Santo. No entanto, o elenco não chegaria a enfrentar um time do estado vizinho até o fim da competição.
O adversário definido para o Bayer na fase eliminatória foi o Lousano Paulista, atual Paulista de Jundiaí. Clube que, entre esses dois nomes, também foi batizado de Etti Jundiaí e Jundiaí F.C. Aquela era uma boa temporada do Galo do Japi que, no primeiro semestre, subiu para a A2 do Campeonato Paulista. A equipe atravessou invicta a primeira fase da Série C e liderou sem qualquer sombra o Grupo 29, a chave caipira, que tinha ainda XV de Piracicaba e os mineiros do Democrata de Sete Lagoas.
A recusa pelos capixabas fez com que o Barra de Teresópolis cruzasse com o Vitória. Sem alguns de seus poucos jogadores experientes, o elenco do Bayer foi depauperado para o momento mais decisivo da competição. Eric e Jaílton estavam recuperados e jogaram a partida de ida, no Louzadão. Pela primeira vez, o técnico Silvio Marques precisou relacionar um amador entre os cinco reservas permitidos no banco naquele tempo.
Trinta e cinco minutos. Esse foi o tempo que o Bayer conseguiu resistir ao Lousano Paulista, naquela tarde de 24 de março, quando Marcos Vinícius achou o caminho do gol de Eric. Alex Oliveira ampliou aos 19 da segunda etapa, e marcou também o terceiro, aos 34. Dois minutos depois, Ivair fez o quarto, e Toni Baiano selou a goleada aos 45. Somente um milagre poderia reverter a vantagem de um time que abrira 5 a 0 fora de casa em um mata-mata.
O clima de desânimo tomou conta da equipe. As boas notícias eram escassas. Para o jogo da volta, Leonardo, Marquinhos e Márcio Ramos, depois de terem cumprido suspensão, voltariam a ficar à disposição do técnico Sílvio Marques para o jogo que ocorreria dali a uma semana. A goleada aplicada pelo Lousano Paulista no Louzadão sugeria um desfecho mais tranquilo para o jogo do Jayme Cintra. Com jogadores poupados, a administração da vantagem já construída e, talvez, uma vitória por menos gols ou até um empate.
Entretanto, os bons resultados obtidos ao longo do ano aumentaram o apetite da Lousano, parceira do clube. A empresa investia pesado em marketing e decidiu fazer barulho para ganhar visibilidade e levar Jundiaí para dentro do estádio. Assim, o jogo do Bayer na cidade do interior paulista seria a estreia de uma das principais contratações da história do adversário: Walter Casagrande. Então com 32 anos, o atacante estava parado desde o ano anterior, em sua última passagem pelo Corinthians.
O roteiro do jogo em Jundiaí foi semelhante ao do Louzadão. O Bayer voltou a fazer um bom primeiro tempo e resistiu até os 38 da primeira etapa, quando o estreante Casagrande, aproveitando rebote, abriu o placar no Jayme Cintra, diante de quase dois mil pagantes que comparecem ao estádio naquela tarde de quarta-feira. Com a porteira aberta, o time da casa não teve trabalho para ampliar na segunda etapa. Marcos Vinícius, aos quatro, Freitas, aos 17, Marcos Vinícius novamente, aos 28, Casagrande, aos 29, de cabeça, Toni Baiano aos 36 e aos 45, concluíram a goleada do Galo do Japi.
Os 12 gols sofridos em dois jogos para o Lousano Paulista chamaram a atenção de todos o cenário dos clubes de menor investimento do Rio de Janeiro. Embora jovem, o time de Belford Roxo era conhecido justamente por sofrer poucos gols. Na Segunda Divisão de 1995, encerrada antes do início da Série C do Brasileiro, a equipe sofreu cinco gols em 14 jogos. O que teria acontecido de tão diferente no início do mata-mata do Campeonato Brasileiro? Passados 26 anos do ocorrido, os envolvidos não têm resposta
“Até hoje a gente não sabe o que aconteceu Foram jogos parecidos, nos quais fizemos bom primeiro tempo e o time se desestruturou depois de ter tomado o primeiro gol. Na segunda etapa, não tinha jeito. Nosso time era jovem, corria muito, mas cansava e eles continuavam voando. Fora que o time deles também era tecnicamente muito bom. Além do Casagrande, eles tinham o meia Ivair, um dos destaques do Bragantino Campeão Paulista de 1990, e o meia Alex Oliveira, que depois passou por Vasco e Fluminense”, afirma Cacá, atualmente, supervisor de futebol do Belford Roxo, clube que esse ano estreia na Série C do Campeonato Carioca.
Depois da derrota, a equipe não voltou de imediato ao Rio de Janeiro. Ainda em clima de ressaca, voltou para o hotel e pernoitou em São Paulo, antes de cumprir o cobrado beija-mão na sede da empresa. Originalmente, a direção queria que o encontro ocorresse antes do jogo, mas a diretoria do clube entendeu que isso atrapalharia a logística. Responsável pelo planejamento, o ex-supervisor do Bayer atualmente se diverte ao lembrar, embora enfatize que na época a situação foi terrivelmente desconfortável.
“Imagine, encontrar toda a empresa depois de ter tomado uma goleada de 7 a 0? Foi horrível. Se soubesse, teria ido antes do jogo, mesmo. Não teria mudado a programação. Até hoje essa foi a derrota com placar mais elástico que eu sofri na carreira. Mas o Paulista tinha um bom time. Não era um supertime, mas era bem entrosado, encaixado. Serviria para mostrar que não tínhamos condições, com aquele time, encarar a Primeira Divisão do Carioca. Mas nem para isso prestou, porque a Ferj nos tirou o direito de jogar a competição”, avalia João Silva.
Se o Bayer foi eliminado no primeiro confronto eliminatório, o Barra de Teresópolis, que enfrentou clubes capixabas em seu grupo, superou o Vitória-ES no primeiro mata-mata e caiu diante do XV de Piracicaba, que seria o campeão daquele ano. O alvinegro decidiria a competição com o Volta Redonda, clube derrotado pelo Bayer na primeira fase, mas que garantiu, ao chegar à decisão, o acesso ao Campeonato Brasileiro da Série B.
Em Belford Roxo, quando a Ferj suspendeu o acesso do Bayer e a empresa desistiu de investir no futebol profissional, houve uma debandada. O clube manteve apenas equipes de base e o aspecto social do projeto. A maior parte do elenco que obtivera em campo o acesso não confirmado nos salões do futebol aportou no vizinho Heliópolis Atlético Clube, da mesma cidade. E o Brasil perdeu a chance de ver a formação de um grande clube.
Agradecimentos: Fernando Martinez, Ivan Gottardo, Marcelo Santos (Marcelão) e Vitor Silva.